sexta-feira, 28 de março de 2008

Nem o Centro nem a Periferia...

Parte II – Escutar o amarelo
O calendário e a geografia da diferença

“O perigo d@s diferentes está em logo parecerem muito entre si”.
Dom Durito de A Laconda.


A luta das mulheres, do centro à periferia?

Se antes falamos que no pensamento de cima existia um abismo entre teoria e realidade e da bulemia teórica concomitante que vira moda em uma parte da intelectualidade progressista, agora queremos nos deter nesse ponto da geografia pretensamente científica que é o centro onde a pedra conceitual, quer dizer, a moda intelectual, cai e se iniciam as ondas que afetam a periferia.
Acontece que essas teorias e práticas surgidas no centro, se estendem até a periferia não só afetando os pensamentos e práticas nesses cantos, mas também, e sobretudo, impondo-se como verdade e modelo a seguir.

Já se falou do surgimento de novos atores ou sujeitos sociais, e se mencionou as mulheres, jovens e outros amores.
Pois bem, sobre estes “novos” protagonistas da história cotidiana, surgem novas elaborações teóricas que, sempre no centro emissor, se traduzem em práticas políticas e organizativas.
Nesse caso da luta de gênero, ou mais especificamente, no feminismo, sucede o mesmo. Em uma das metrópoles surge uma concepção do que é, de seu caráter, de seu objetivo, de suas formas, de seu destino. Daí se exporta a pontos da periferia, que a sua vez, são centros de outras periferias.
Esta imagem não se dá sem os problemas e “engarrafamentos” próprios das distintas geografias.
Tampouco se dá, paradoxalmente, em termos de equidade. E digo “paradoxalmente” porque um dos riscos essenciais das lutas é sua demanda de equidade, de equidade de gênero.
Espero que as companheiras e companheiros que elaboram esta luta, e que estão me escutando ou lendo, desculpem o reducionismo e simplismo com que estou tocando este ponto. E não é porque queira salvar meu machismo, tão natural e espontâneo, a sério, e sim porque não estamos pensando, quando nos referimos a isto, nos esforços que levam adiante. Não dizemos que seus projetos não sejam questionáveis. O são e nem mais de um aspecto, mas estamos falando de outra luta de gênero, de outro feminismo: o que vem de cima, do centro à periferia.
Em uns dias a mais, as mulheres zapatistas celebrarão um encontro onde sua experiência e palavras terão um aspecto único, assim que não adentrarei mais neste tema. Contudo, quero contar-lhes a breve história de um desencontro.

Nos primeiros meses posteriores ao início de nosso levante, um grupo de feministas (assim se autodeterminaram) chegaram a algumas das comunidades zapatistas.
Não, não chegaram a perguntar, a escutar, a conhecer, a respeitar. Chegaram a dizer o que deviam fazer as mulheres zapatistas, chegaram a libertá-las da opressão dos machos zapatistas (começando, evidentemente, por libertá-las do Sup), a dize-las quais eram seis direitos, a mandar pois.

Cortejaram quem consideravam as chefas (por certo, com métodos muito masculinos, diga-se de passagem). Através delas tentaram impor, de fora, na forma e conteúdo, uma luta de gênero que nem sequer se detiveram em averiguar se existia ou não e em que grau nas comunidades indígenas zapatistas.

Nem sequer pararam para ver se as haviam escutado e entendido. Não, sua missão “libertadora” estava cumprida. Voltaram a suas metrópoles, escreveram artigos para periódicos e revistas, publicaram livros, viajaram com os gastos pagos ao estrangeiro dando conferências, tiveram cargos governamentais, etc.

Não vamos questionar isto, cada um consegue as férias como pode. Só queremos recordar que não fizeram coisa alguma nas comunidades nem trouxeram benefícios algum às mulheres.
Este desencontro inicial marcou a relação posterior entre as mulheres zapatistas e as feministas, e levou a uma confrontação soterrada que, claramente, as feministas imputaram ao machismo vertical e militarista do EZLN. Isto chegou até o ponto em que um grupo de Comandantas negou um projeto sobre direitos da mulher. Acontece que queriam dar uns cursos, desenhados por cidadãs, ministrados por cidadãs e avaliados por cidadãs. As companheiras se opuseram, queriam ser elas quem decidissem os conteúdos e elas quem ministrassem o curso e elas quem avaliassem os resultados e o que seguia.

O resultado vocês poderão conhecer ao assistir ao Caracol da Garrucha e escutarem, dos próprios lábios das zapatistas, essas e outras histórias. Talvez lhes ajudaria a entender melhor, levar a disposição e o ânimo de compreender. Talvez, como Sylvia Marcos no Israel das beduínas, entenderiam que as zapatistas, como mulheres em muitos cantos do mundo, transgridem as regras sem descartar sua cultura, se rebelam como mulheres, mas sem deixar de ser indígenas e também, sem esquecer, sem deixar de ser zapatistas.

Faz uns anos, um jornalista me contou que havia encontrado na estrada uma senhora zapatista e lhe havia dado “aventón” até o povoado. “Andava com uniforme ou calça ou botas?”, lhe perguntei preocupado. O jornalista me esclareceu: “Não, levava nagüa, camisa bordada e estava descalça. Ainda levava seu filho carregando no rebuço”. “Como supôs então que era zapatista?”, lhe insisti. O jornalista me respondeu com naturalidade: “é fácil, as zapatistas param diferente, caminham diferente, olham diferente”. “Como?”, reiterei. “Pois como zapatistas”, disse o jornalista e sacou sua gravadora para perguntar-me sobre a proposta de diálogo do governo, as próximas eleições, os livros que tem lido e outras coisas igualmente absurdas.
Contudo é necessário assinalar que esta distância tem diminuído graças ao trabalho e compreensão de nossas companheiras feministas da Outra Campanha, particularmente e de maneira destacada, nossas companheiras da Outra Jovel.

Segundo minha visão machista, em ambos cantos tem se entendido a diferença entre umas e outras e, por tanto, tem iniciado um reconhecimento mutuo que acabará em algo diferente, e que seguramente poderá abalar não só o sistema patriarcal em seu conjunto, e também quem apenas estamos entendendo a força e o poder dessa diferença, e que nos leva a repetir, ainda que com outro sentido, o “Vive le difference”, viva a diferença!

Dessa tensão que, paulatinamente, se converte em liga e ponte, resultará um novo calendário em uma nova geografia. Um e uma onde a mulher, em sua igualdade e em sua diferença, tenha o lugar que conquiste nessa sua luta, a mais pesada, a mais completa e a mais contínua de todas as lutas antisistêmica.

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