segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Esquecer as mulheres


Política, Mulheres e Filosofia *
Marcia Tiburi

Esquecer as mulheres


Quero oferecer um resumo de um histórico esquecimento. O que envolve a quase total, e que se diga, a substantiva ausência das mulheres da história do pensamento. Não é possível pensá-la sem antes questionar a função política do esquecimento. Não sem prestar atenção ao fato de que diante do esquecimento a possibilidade da história é relativa e que, a política, neste caso posta como urdidura da história, obriga a uma revisão da invenção do homem diante do que lhe escapa.

Em primeiro lugar é preciso saber que o esquecimento tem como função nos proteger. É algo mais que saudável, é o verdadeiro antídoto contra o ressentimento. Friedrich Nietzsche louvou sua pertinência diante do ressentimento como impossibilidade de esquecer, fato que danificava nossa relação com a vida, por evitar o prazer e a alegria que lhe são próprios. O esquecimento era um mecanismo vital que impedia o eterno lembrar e relembrar no qual o passado era o eixo de uma paranóia. Ressentir é lembrar sem outro propósito do que sofrer. Só o esquecimento romperia a engrenagem paranóica em que o passado seria a medida de todo o tempo e nos massacraria sob um impiedoso peso. E Nietzsche tinha razão: é preciso esquecer para livrar-se do passado se o que ele oferece ao presente é dor e nada. Ressentimento é o nome do sofrimento que vem com o peso do tempo. Esquecer, diante disto, é curar.

Apenas, não esqueçamos, não é curado o esquecido. Por isso, falei em histórico esquecimento, ou seja, o esquecimento que deixa suas marcas, feridas sempre pulsantes, na medida do tempo que é a história. Como ele se produz?

Além da função redentora do esquecimento, como queria Nietzsche, há que se analisar a função de poder que toma o esquecimento como dispositivo. Se esquecer é um poder, tornar esquecido é dominação. A história das mulheres dela deriva.

É preciso lembrar para construir a história, tal é o básico lugar comum a que temos que ceder. A história como memória é uma luta contra a morte do passado. E o esquecimento longe de ser algo desejável é o seu algoz. Por outro lado, a história não é a simples antítese do esquecimento, outro fato que somos obrigados a pensar se nosso processo tem consideração à dialética. A história é, ela mesma, esquecimento, ou seja, o que é lembrado só pode ser lembrado porque algo foi esquecido. Não há como lembrar ou preservar a lembrança do que não se esqueceu ou não esteve prestes a ser esquecido. O que se grava em nossa memória o foi por algum reforço de substâncias somáticas lançadas no organismo em função de um estímulo fortíssimo provocado por um evento externo que nos obriga a gravar o fato. Além disso, há o trauma que nos faz esquecer o que seria para sempre lembrado devido ao grau do choque nele vivido. O trauma mostra que o recalque é parte essencial da memória. Uma implosão da memória que tudo invade e, tornando-se totalidade, impede a evolução de outras formas, de um novo que lhe negue. O trauma torna-se para quem o vive, sempre inconscientemente, uma medida de todas as coisas. O recalque, mecanismo do trauma, é só o que faz sobreviver ao trauma. Compõe sua constituição, não há como livrar-se de seu mecanismo, pois não controlamos o que podemos lembrar.

É preciso um grande esforço para organizar nossos níveis de memória. É o que faz a história. O que se revela na linha do tempo sempre é aparição de algo outro que não se pode ver ou que, noutra medida, apareceu enquanto não apareceu. O que foi esquecido torna-se a medida do que pode ser lembrado. O oculto está sempre à mostra. Para atingi-lo, o saber que nele se guarda, é preciso reler e prestar atenção à superfície, pois não temos uma boa percepção, não somos bons leitores das linhas do tempo. Ou seja, a cada vez que elegemos um fato que deverá figurar na cena histórica, algo que possa ser contado e transmitido, deixamos outro aspecto de fora. Todo positivo envolve um negativo. A história é como a fotografia.

Se a questão são as mulheres na história podemos recorrer a Georges Duby e Michele Perro, autores dos cinco impressionantes volumes da História das mulheres, que já questionaram esta possibilidade: teriam elas uma história? Por que não? A pergunta já guarda sua resposta como uma segunda camada de perguntas: por onde construir uma memória para estas figuras, ícones do esquecimento, que provam com sua existência a impossibilidade da história? Se pensarmos na dialética desta pergunta incrementamos nosso pensamento: há que se desocultar as tramas internas de uma história que não foi bem contada. E outra pergunta se impõe: por que as mulheres ficaram de fora? Teria sido o esquecimento das mulheres alguma espécie de projeção dos homens sobre o poder que lhe seria próprio? A história das mulheres como algo extra-histórico revelaria a história verdadeira dos homens? Qual a verdade que mora nesta ausência de poder das mulheres? A do poder dos homens? Que poder é esse? A história dos homens e a história das mulheres é uma questão de poder. Mas apenas isso? A história do pensamento envolve o que não foi pensado e o impensável. A história das mulheres na filosofia é a medida da história do pensamento dos homens que conhecemos. O que seria um pensamento das mulheres neste caso? Seria esta a questão a colocar hoje?

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