terça-feira, 28 de outubro de 2008

Um pouco de Lima Barreto*

(*)Os dois techos que seguem foram publicados em 1915 em "Vida Urbana". Lima Barreto nasceu em 1881 no Rio de Janeiro, foi jornalista e um dos mais importantes escritores brasileiros. Nas suas obras aparecem os pobres, boemios, arruinados, explorados e no caso dos dois trechos abaixo, as mulheres em duas situações em que seus direitos aparecem violados (criminalização do aborto e violencia de gênero). Crítico a roupagem alegórica da república, encarava a literatura como meio militante e o escritor como ator político. Seu estilo coloquial foi alvo de crítica dos parnasianos da época e inspitação para os escritores modernos. Lima Barreto tinha grandes afinidades com o pensamento anarquista e publicava seus textos na impresa de esquerda da época. Morreu em 1922 com 41 anos.


A LEI

Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.

Vê-se bem que na intromissão da "curiosa" não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma ter­rível situação.

Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! você quis impe­dir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.

Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas porque a ou­tra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?


NÃO AS MATEM

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.

O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha, veio morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.

Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.

O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.

Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.

De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa-vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.

O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido.

Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor.

Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

Deixem as mulheres amar à vontade.

Não as matem, pelo amor de Deus!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

"Sou Feliz, Descobri Meu Clitóris"


"Sou Feliz, Descobri Meu Clitóris"
Reflexões de Um Ano de Gafe

Esse mês a gente comemora um ano de Gafe. Um ano das primeiras reuniões, ações e evetos. Mas essa história vem bem de antes.. Já vem das meninas do Movimento Passe Livre que sentiam uma puta vontade de conversar sobre os papéis que a gente cumpre e que nos falam para ocupar na vida, baseados em critérios bem estranhos. E tinha também outros homens e outras mulheres por aí que de algum jeito tambem se sentiam indomodadxs com essa demarcação aleatória sobre nossos corpos. Foi dessa fusão, desse encontro, que nasceu nosso coletivo. Um coletivo cheio de dúvidas, de incertezas, de paixões, frustrações, mas principalmente de muitas vontades. A gente trazia individualmente a vontade de discutir, dividir, aprender, e principalmente mudar coisas tão delicadas, que por tantos anos nos passaram desapercebidas. Uma vontade imensa de romper mordaças, cadeados, cintos de castidade, correntes e vendas. Vontade de afirmar o diferente, questionar o que sempre esteve ali, parado como se não pudesse ser de outro jeito.
Nesse tempo todo tivemos consciencia do nosso tamanho. Nós sabemos que estamos engatinhando, que aina há muito o que aprender. Mas talvez, essa tenha sido a grande virtude do grupo: ser pequeno é aprender, e a gente aprende é na prática. Por todos esses meses foi isso que a gente buscou. Aplicar em ações concretas o pouco que a gente já sabia, dividir nossas dúvidas estimulando a confusão de quem pensa que já está esclarecidx, conversar com a cidade sob as maneiras mais diversas: pixações, marchas, cartazes, panfletos, rodas de discussão. Até aqui, essas foram as maneiras que a gente encontrou para colocar todas os gritos pra fora - tanto de os indiginação como os de incerteza.
Com ousadia nos demos o direito de declarar: estamos felizes, descobrimos nossos clitóris. Mas o que diabos queremos dizer com isso????
Os clitoris são descobertos quando afirmamos um prazer sexual que nos foi negado por tantos anos. Mais além, muito mais além, descobrir o clitóris é retomar nosso corpo antes moldado e expropriado pelos discursos dos técnicos, dos especialistas, dos médicos, dos académicos, dos cafetões, da família, do trabalho, das propagandas, da mídia, das cobranças, dos padrões, dos psiquiatras, da escola, do Estado, da igreja. É perceber esse roubo histórico e, apartir disso, buscar acabar com ele e retomar o que é nosso por direito.
Descobrir o clitóris é construir novas relações e expor a falência das velhas. É dar belos golpes contra o individulismo, o consumismo e o egoísmo, que comandam a maneira como nos relacionamos com todos os outros seres. É lutar contra as relações desiguais, de dominação, de submissão, de possesividade, e sob seus escombros edificar relacionamestos mais livres, igualitários, cheios de possibilidades de vivências, que não precisem seguir aqueles modelos falidos de rivalidade, de homofobia, de violência, de violações, de competição e preconceito.
Descobrir o clitóris é também retomar nossas identidades. Negar boa parte do que aprendemos a ser, a agir, a fazer. É lembrar que somos múltiplxs, fluídxs..que podemos ser um monte de coisas ao mesmo tempo para deixar de ser aquilo que desde pequenxs nos convenceram a ser. Descobrir as possibilidades, os jeitos tão diferentes que podemos encarar o que passa pela nossa frente.
Mais que tudo, é descobrir que as coisas podem ser de outro jeito...
É muita coisa! Talvez seja muita audácia mesmo a gente falar que já descobriu todos os clitoris possíveis!
Ainda falta muito, ainda há muitas coisa há ser destruida, coisas grandes e poderosas, esperando que coletivamente coloquemos umas bombas em suas bases.. Bombas e molotovs que virão da selva mexicana, da ilha de santa catarina, do altiplano boliviano, enfim, de todos os lados!
Vamos seguir trocando experiencias, conversando, escutando, agindo, destruindo o que tá imposto, construindo o novo!
Seguimos todxs procurando nossos clitóris rumo a um orgasmo coletivo!
Vulva la Revolucion! * outubro.2008

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Relato - Resistir Para Existir II

O que? Você perdeu o Resisitr II?
Nossa.. que vacilo hein? Mas tudo bem, você pode ler o relato de uma gafiana e descobrir como foi!
Mas vê se não faz isso de novo hein! Fica ligadx
!


RESISTIR PARA EXISTIR II

Depois da realização do Resistir para Existir I, em novembro de 2007 na Universidade Federal de Santa Catarina, o Grupo de Ação Feminista – GAFe, sentiu a necessidade de levar as discussões para a descontrução dos papéis de gênero para outros lugares de Florianópolis. O Resistir para Existir II aconteceu no dia 28 de setembro de 2008 no salão da capela São Sebastião no bairro do Campeche.

Mais uma vez o evento exigiu bastante colaboração d@s participantes. O dinheiro utilizado para o pagamento de cartazes, material e lanche foi conseqüência das vendas da camiseta e do brechó realizado pela GAFe nos meses anteriores.

A ajuda das moradoras do Campeche também foi fundamental. O espaço foi cedido com muita boa vontade e disposição. Achamos extremamente importante agradecer mais uma vez e demonstrar nossa felicidade pelo sucesso da realização dessa atividade.O espaço do salão da capela era bem grande, com várias cadeiras, cozinha, mesas e acomodou confortavelmente tod@s participantes. Além disso, ficava em um pracinha silenciosa com uma vista muito bonita para o mar.

O evento começou no domingo por volta das 15 horas e iniciou com a apresentação da ginecologista Maria Inês, já conhecida entre @s gafean@s por sua participação no Resistir para Existir I. Novamente, a Dra. Inês se mostrou muito competente no seu trabalho e capaz de adequar sua fala ao público do Campeche. Com maquetes do sistema reprodutor feminino e masculino, a médica mostrou o funcionamento dos corpos considerando as diferenças sexuais. Diversas dúvidas foram esclarecidas, como doenças masculinas e femininas, questões da primeira menstruação, vida sexual, menopausa e importância do diálogo entre os casais. Uma conversa espontânea aconteceu diversas vezes durante a apresentação e os resultados da atividade se mostraram imediatamente com as reflexões d@s participantes.
Após a atividade, a Dra. Inês foi muito elogiada por sua sutileza e domínio dos temas tratados. Esse cuidado da médica foi fundamental para que o assunto fluísse e não causasse nenhum tipo de má impressão n@s presentes.

Depois da oficina “Conhecendo Corpos” com a Dra. Inês, todo mundo foi aproveitar o lanchinho, com bolachas, frutas e café. Nesse momento, conhecemos quem eram as pessoas interessadas na GAFe e na atividade.
Retornamos com a exibição do curta metragem “Acorda, Raimundo acorda”. Este filme, com atores e atrizes conhecid@s, como Paulo Betti, Eliane Giardine e José Mayer, mostra uma troca de sexo entre o casal Raimundo e Marta. Situações de falta de dinheiro, conflitos familiares, trabalho doméstico, maternidade e machismo são explorados de maneira clara, e, em muitas vezes, cômica.

Após o filme diversas idéias foram expostas sobre os diferentes papéis sociais de homens e mulheres. Apesar de reconhecerem as exceções, muitas mulheres confirmaram que o machismo e a responsabilidade pelo trabalho doméstico são presentes no cotidiano da maioria das mulheres. Discutimos ainda a educação diferenciada para meninas e meninos e de como isso interfere no nosso futuro. Acredito que tod@s saíram dispost@s a lutar por uma relação mais igualitária no cotidiano, já que reconhecemos que estes papéis não são naturais, mas socialmente impostos.

Ainda exibimos o curta “Artigo Segundo” que aborda as diferentes formas de violência presente no nosso cotidiano. O filme também usa uma linguagem simples e representa como conversas e atitude aparentemente inocentes servem para reforçar o machismo.

Ficou claro entre as mulheres que temos participação ativa na perpetuação do machismo e que somos coniventes com vários discursos sexistas e preconceituosos. Após este filme, várias histórias e trajetórias de vida foram contadas e a diferente idade d@s participantes permitiu uma comparação entre os dias de hoje e décadas anteriores. O Resistir para Existir II terminou por volta das 19h30min.

Por fim, acho que o mais importante é que a atividade tenha ajudado a tod@s a buscar relações familiares, profissionais e cotidianas mais igualitárias, porque como foi falado na atividade, o feminismo não é o contrário do machismo, mas uma luta constante e árdua pela igualdade.

O GAFe agradece muito a boa vontade de tod@s @s participantes , da Dra. Inês, sempre ajudando o grupo, a Dona Jupira, moradora do Campeche, que participou da atividade e teve que dedicar todo seu domingo, a tod@s e tod@s da GAFe que ajudaram se estressando, dando caronas, tirando fotografias, carregando coisas e tudo mais. Valeu a tod@s!!!
MAIS FOTOS -> http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/09/429453.shtml